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sexta-feira, 14 de março de 2008

A ROLETA-RUSSA DA AIDS

Para não pegar aids, o que funciona é camisinha. Essa é uma lição básica ensinada nas escolas, nos anúncios de TV, em quase todo lugar. Quem não gosta de usar preservativo gostaria de descobrir uma forma mágica de proteção. A mais recente aposta é tomar anti-retrovirais antes do sexo na tentativa de impedir a infecção. Esse comportamento vem sendo observado nos Estados Unidos, principalmente em comunidades e boates gays de São Francisco, na Califórnia. Pessoas saudáveis tomam um comprimido todas as manhãs. Outras acreditam que uma única pílula antes da balada já garante imunidade na hora do sexo.

Essas práticas arriscadas ganharam impulso no mês passado, quando foram divulgados os resultados de um surpreendente estudo da Universidade do Texas. Cinco fêmeas de camundongo tiveram o sistema imune modificado para que ele funcionasse de forma semelhante ao humano. Em seguida, receberam medicamentos que tratam a infecção pelo HIV. Mesmo depois de expostas ao vírus, elas não o contraíram. "É uma notícia fantástica", disse o médico Warner Greene, diretor do Instituto de Virologia e Imunologia Gladstone da Universidade da Califórnia.

Há indícios de possível queda no risco de contrair o HIV com o uso de anti-retrovirais. As primeiras evidências surgiram em 2004 num estudo com macacos. Mas não há prova científica em experiências com seres humanos. Usar os remédios como uma espécie de "vacina" é um risco elevado, por mais de um motivo. "É um absurdo extrapolar resultados de pesquisas iniciais feitas em animais para seres humanos", diz o infectologista José Valdez Madruga, do Programa Estadual DST-Aids da Secretaria de Saúde de São Paulo.

Não há sinais de que a onda de automedicação tenha chegado ao Brasil, mas pode ser questão de tempo. Por isso, os especialistas estão preocupados. "Sem camisinha, não há prevenção contra o HIV e as doenças sexualmente transmissíveis", afirma o infectologista Esper Georges Kallás, professor da Universidade Federal de São Paulo. "Além disso, os remédios apresentam fortes efeitos colaterais." Náuseas, anemias, aumento do colesterol e má distribuição de gordura no corpo são reações comuns nos portadores do HIV que tomam os remédios. Com o tempo, surgem também problemas de coração, fígado, rins e pâncreas. Complicações dessas doenças podem levar à morte. "Quem toma o medicamento sem precisar sofrerá as mesmas conseqüências", afirma o infectologista Madruga.

Hoje, os remédios já são usados em tratamentos emergenciais em casos de alto risco de exposição ao HIV: mulheres violentadas, grávidas soropositivas e profissionais de saúde que se machucaram com instrumentos infectados. Nessas três situações, as pessoas recebem anti-retrovirais durante um mês. O objetivo é impedir que o vírus penetre nas células. Nos três primeiros dias de infecção, os anti-retrovirais são altamente eficazes contra o vírus. Entre os filhos de mães soropositivas que se submetem ao tratamento, menos de 1% nasce com o HIV. Há sucesso também no tratamento de profissionais de saúde infectados acidentalmente e de mulheres estupradas.

Com base nesses resultados, alguns especialistas acreditam que no futuro esses remédios possam ser usados como ferramenta de prevenção. Esse tema foi discutido na Conferência da Sociedade Internacional de Aids, que ocorreu em julho do ano passado na Austrália. Os que defendem a idéia dizem que há razão para otimismo. Já foram realizados testes em animais, os remédios são regulamentados, estão disponíveis e podem ser receitados por qualquer médico.

Há também estudos com mulheres expostas a um alto risco de infecção em países africanos como Gana, Camarões e Nigéria. Elas recebem anti-retrovirais para evitar a infecção, mas os estudos estão longe do final. Outra corrente sustenta que não há investimento suficiente nem para o tratamento dos pacientes infectados em países como os africanos. Como garantir, então, verba extra para a estratégia de prevenção? Há outros dois grandes obstáculos: os efeitos colaterais e o incentivo ao comportamento de risco.

Mesmo que o "pré-tratamento" um dia se torne realidade, nunca poderá ser dissociado das medidas de prevenção já existentes, como a camisinha e a educação sexual, diz o infectologista Kallás. "Ainda precisamos de muitos estudos que comprovem a eficácia e a segurança do procedimento. E nada poderia ser feito sem acompanhamento médico."

O pior aspecto da automedicação é a resistência do organismo aos anti-retrovirais. A pessoa que toma remédios sem necessidade pode não se beneficiar deles caso seja infectada. A prática, portanto, pode representar uma enorme ameaça ao controle da epidemia global de aids, que atinge 33 milhões de pessoas - 600 mil no Brasil. "Tomar um anti-retroviral para se proteger da infecção pelo HIV é o mesmo que tomar antibiótico hoje acreditando que não pegará uma pneumonia amanhã", diz o infectologista Caio Rosenthal, do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. "Teremos milhões de pessoas infectadas que não poderão ser tratadas com os remédios disponíveis."

Recentemente surgiram nas casas noturnas do Texas, nos EUA, coquetéis vendidos com um mix de drogas: remédio para disfunção erétil, antidepressivo, anti-retroviral e ecstasy. Uma bomba para a saúde, dizem os médicos. Eles não sabem quantas pessoas estão usando as drogas sem necessidade. Uma pista é dada por uma pesquisa americana realizada pelo Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC) em eventos como a Parada Gay realizados em 2006. Ela mostrou que 7% dos homens que freqüentavam festas como essas utilizavam remédios contra a aids de forma "preventiva". Desse total, 20% afirmavam conhecer outro gay que também tomava o remédio com o mesmo propósito. Segundo outro levantamento recente, publicado no Journal of Aids, menos de 1% de gays e bissexuais faz uso de anti-retrovirais sem necessidade, dentro de um universo de 1.819 entrevistados.

A esperança de proteção é o que transforma teorias médicas em práticas de risco, diz o psicólogo Roberto Pereira, coordenador do Centro de Educação Sexual, uma ONG carioca. "Quando surge algo que parece milagroso, os hábitos de prevenção acabam ainda mais renegados", afirma. "É uma fantasia, baseada em informações que chegam desencontradas e sem referências." É a mesma lógica do jovem na faixa dos 20 anos que usa Viagra acreditando que alcançará um desempenho sexual melhor. Uma ilusão cheia de riscos.

Fonte: Revista Época
Jornalista: Suzane Frutuoso

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